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03 fevereiro, 2012

Edifício Malleta se torna um cinquentão

Reportagem do jornal Estado de Minas


Domingo 04 de outubro de 2009 08:19
República independente
Edifício Malleta se torna um cinquentão
Reduto de boêmios e intelectuais nas décadas de 1960 e 1970 e território democrático durante a ditadura, prédio do Centro de Belo Horizonte comemora 50 anos com histórias inesquecíveis
Gustavo Werneck - Estado de Minas


Beto Novaes/EM/D.A Press






Ele nasceu para ser outra cidade dentro de Belo Horizonte, com área residencial, lojas, serviços, bares e restaurantes. Mas logo nos primeiros anos, como se fosse predestinado, mostrou a sua irresistível e natural vocação para reunir gente das artes, intelectuais, escritores, jornalistas, estudantes, boêmios, sonhos incandescentes e altas discussões. Tudo isso num clima libertário, com um pé em atitudes revolucionárias e outro numa atmosfera meio maldita e permeada pelos prazeres da vida. O conjunto Arcangelo Maletta, na esquina da Avenida Augusto de Lima com Rua da Bahia, no Centro, completa sábado 50 anos, com ampla programação durante o mês. Nas bodas de ouro, o Maletta quer deixar bem longe a fama de mau das décadas de 1960 e 1970 e ganhar ares da modernidade. Mesmo que, para alguns moradores, tenha se transformado num palácio de tranquilidade, o tempo e os mais jovens só reforçam o passado de glórias e o glamour do prédio, também um refúgio durante a ditadura militar, numa reverência à história que se confunde com um pedaço importante da memória de BH. Por suas galerias, bares e restaurantes ou inferninhos circularam Pedro Nava (1903-1984), Murilo Rubião (1916-1991), Roberto Drummond (1933-2002), o artista plástico Chanina, Milton Nascimento e outras personalidades que deixaram saudade.


São 14h de uma sexta-feira nublada em Belo Horizonte. O trânsito está lento na Avenida Augusto de Lima, a tarde abafada, mas o chaveiro Nildo de Oliveira, de 70 anos, mantém o bom humor e calma habituais. Há 42 anos, em sua oficina na entrada do Edifício Maletta, ele é testemunha involuntária de todo o entra e sai no condomínio. Diariamente, cerca de 5 mil pessoas passam pela galeria principal em direção aos apartamentos ou a bares, livrarias, sebos, barbearias, salões de beleza, relojoarias e outras lojas. Aos poucos, Nildo mostra outra qualidade: discrição, o que é uma tristeza para os curiosos. Seu ponto privilegiado fica ao lado da pioneira Livraria Eldorado e em frente à Cantina do Lucas, restaurante que abriu as portas em 1962, foi tombado como patrimônio cultural da cidade e virou a grande vedete gastronômica do prédio cinquentão. Muito do charme da casa, todos reconhecem, foi entregue de bandeja pelo garçom “Seu” Olímpio (1919-2003), esquerdista, politizado até a medula e confidente noite adentro dos clientes.


Sorriso amigo, o proprietário do Reino das Chaves conta que o Lucas, tratado com essa intimidade pelos frequentadores e vizinhos, se tornou a parada obrigatória de cantores e atores. Gal Costa, Zezé Motta desfrutando do sucesso do filme Xica da Silva, Jô Soares e outras celebridades de naipe bateram ponto – e papo – nas mesas do restaurante. Mas diante dos olhos de Nildo, nada se compara à concentração da Banda Mole, no sábado que antecede o carnaval, com suas fantasias, irreverência, colorido e ambiguidade. “Os foliões sobem a Rua da Bahia e enchem a galeria. É bem divertido, gosto de apreciar”, revela.


Caminhar pelos corredores do Maletta, conversar com antigos moradores, ouvir comerciantes e entrar nas lojas, é tudo um ritual de descobertas. Nesse ambiente desgastado pelo tempo, e ainda em ebulição, há um universo particular que passa por livros, músicas, filmes, comportamento, pensamentos, palavras e obras, em especial as literárias. Quem conhece muito esse mundo cinquentão, que congrega mais de uma dezena de sebos, é o livreiro José Ronaldo Lima, de 70, dono da Shazan, na sobreloja, que vende volumes novos e usados. Ele conta que o Maletta sempre foi o grande ponto de referência da intelectualidade. “Na década de 1960, tinha bar e restaurante para todas as tribos. Lucas, Lua Nova e Sagarana eram os mais elitizados, caso também do Oxalá, que parecia uma cave francesa e reunia os existencialistas. O pessoal ligado em cinema preferia o Sagarana, enquanto os artistas plásticos e escritores gostavam do Lua Nova”, conta José Ronaldo. Já no Bar Berimbau, onde o cantor e compositor Milton Nascimento tocava contrabaixo, se encontravam os futuros integrantes do Clube da Esquina.


Certidão


O cinquentenário se refere à data da escritura da convenção do condomínio registrada em cartório, embora as primeiras unidades tenham sido concluídas no início dos anos 1960. “10 de outubro de 1959 é, portanto, o dia em que o Maletta nasceu”, conta o síndico Hélio Sêda, advogado, que ocupa o posto há 29 anos e é considerado o responsável pelo choque de gestão que pôs ordem no prédio, quando, a partir da década de 1980, ele já estava em rota de decadência, tinha ares de pardieiro, muitas prostitutas como inquilinas e dezenas repúblicas de estudantes.


Com área construída de 88 mil metros quadrados, maior até do que o JK, na Praça Raul Soares, o Conjunto Arcangelo Maletta tem uma comunidade de 3 mil pessoas, entre moradores e trabalhadores. No total, são três blocos: um comercial, com 20 andares e 642 lojas; o Dona Genoveva, de administração independente, com 18 andares e 60 apartamentos de quatro quartos; e o terceiro com 30 andares e 319 apartamentos. No primeiro e segundo pisos há 123 lojas, e na parte externa, 22, sendo 12 com saída para a Augusto de Lima e 10 para a Rua da Bahia. Sêda lembra ainda que, até a década de 1970, funcionou um supermercado do conjunto, com 49 lojas. Nos planos do síndico está um projeto de requalificação, a um custo de R$ 1,3 milhão, o que daria uma cara de shopping à loja e sobreloja.


“Na década de 1960, havia bar e restaurante para todas as tribos. Lucas, Lua Nova e Sagarana eram os mais elitizados” - José Ronaldo Lima, livreiro

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